Sobreviventes ainda buscam justiça e ‘desfecho’ dez anos depois. Incidente aconteceu em Rhode Island
Há exatos dez anos, um incêndio em uma casa noturna da cidade de West Warwick, no Estado americano de Rhode Island, deixava cem mortos e um país inteiro estarrecido.
Prisões, indenizações milionárias e uma década não conseguiram, entretanto, trazer o tão esperado desfecho para muitos dos sobreviventes e parentes de vítimas fatais do incêndio na boate The Station, cujas circunstâncias já estão levando a associações com a tragédia de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
“Nossos pensamentos estão com as vítimas dessa tragédia no Brasil. Esse é um pesadelo que ainda vai ficar pior antes de a poeira começar a baixar”, disse à BBC Brasil uma das sobreviventes do incêndio de Rhode Island, Gina Russo, que atendeu à ligação da reportagem como quem já esperasse um contato.
“Daqui a muitos anos as pessoas ainda vão estar lutando para entender o que aconteceu. Fico de coração partido por cada uma delas, porque sei o que elas estão passando.”
No dia 20 de fevereiro de 2003, Gina era uma das centenas de pessoas que assistiam ao show da banda The Great White, quando fogos de artifício que faziam parte do espetáculo acidentalmente iniciaram o fogo na boate da cidade localizada a uma hora de Boston.
As chamas se espalharam com o revestimento acústico da casa, uma espuma de material químico altamente inflamável, que não apenas gerava fumaça tóxica ao queimar, como pingava do teto, queimando a pele do público.
As investigações posteriores mostraram que a casa estava superlotada e que não possuía saídas de emergência adequadas. Várias pessoas foram pisoteadas ao tentar deixar o local, o que apenas piorou a obstrução das portas.
Gina conseguiu escapar, mas teve 40% do corpo queimado. Já passou por 54 cirurgias. Conhece pessoas que já passaram por mais de cem operações, que ficaram cegas, que tiveram queimaduras pelo corpo inteiro.
Ou simplesmente que não escaparam. Como seu noivo à época, Fred Crisostomi.
Prisões e indenizações
Em número de mortes, o incidente foi o quarto incêndio em uma casa noturna mais destruidor da história americana, de acordo com a Associação Nacional de Proteção contra Incêndios (NFPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos.
O clamor público gerado em toda a região da Nova Inglaterra, no leste do país, levou a uma mudança nas leis que exigem que os locais de agremiação pública instalem borrifadores de água (sprinklers) para casos de emergência (erroneamente, a The Station havia sido isenta de instalá-los, com base na idade do prédio).
Os co-proprietários da casa, os irmãos Michael and Jeffrey Derderian, e o gerente da banda, Daniel Biechele, foram a julgamento.
Michael e Daniel receberam penas de prisão de 15 anos, mas através de uma combinação de acordos para reconhecer a responsabilidade e bom comportamento, só cumpriram entre dois e três. Jeffrey foi condenado à prestação de serviço comunitário.
Além disso, os familiares e as vítimas conseguiram processar com sucesso várias empresas envolvidas no evento – desde as companhias responsáveis por produtos químicos e materiais de construção, até a fabricante de cerveja que estava promovendo o show.
Segundo o Providence Journal, jornal da capital de Rhode Island, as compensações somavam US$ 175 milhões (cerca de R$ 355 milhões) até 2010.
No fim do ano passado, a associação de vítimas do desastre, The Station Fire Memorial Foundation, presidida por Gina, conseguiu que fosse erguido um memorial no local para marcar o incidente. Depois de muita pressão pública, o terreno foi doado pelos ex-proprietários para a Fundação, que pretende começar as obras em março ou abril próximos.
Gina diz que pretende construir algo ‘bonito’ para tentar ‘trazer paz’ aos sobreviventes e suas famílias.
Justiça
Mas apesar dos avanços, Gina ainda considera que o preço pago pelos responsáveis da tragédia foi pequeno.
“Muito mais gente deveria ter sido investigada: responsáveis pela fiscalização, os responsáveis pela fiscalização de incêndios, as autoridades que deram o aval para o uso de pirotecnias dentro da casa’, disse ela à BBC Brasil. ‘Tudo isto ainda é motivo de muita dor entre os familiares.”
Em um livro minucioso (The Killer Show, um trocadilho que se pode traduzir como ‘O Show Matador’), o advogado das vítimas, John Barylick, compara a tragédia da The Station com desastres como o do Titanic, em que os acontecimentos são uma sucessão de erros que ninguém conteve a tempo.
“Se a fiscalização tivesse feito o seu trabalho, se a casa tivesse empregados treinados para emergências, se não houvesse superlotação, se não tivessem feito uso de pirotecnicas ilegais dentro de um lugar fechado, se não tivessem usado nas paredes uma espuma inflamável que um analista chamou de ‘gasolina líquida’, se a casa tivesse saídas de emergências adequadas, poderia ter-se evitado o incêndio ou pelo menos tantas mortes”, disse ele, em uma entrevista à rádio pública americana, NPR.
Gina diz que a tragédia mudou radicalmente a sua vida, e que pensa no ocorrido “todos os dias da minha vida”.
Ela lamenta que incidentes como a que lhe afetaram pessoalmente não sejam ouvidos e que acidentes como as que marcaram também a Argentina, a Rússia, a China e agora o Brasil ainda ocorram apesar das lições da história.
“Dou várias palestras – será que alguém está escutando? Será que valeram a pena os últimos dez anos?”, questiona. “Ninguém quer escutar, porque a coisa toda gira em torno do lucro.”
“Tenho muita pena das pessoas que morreram (na tragédia de Santa Maria) e dos seus familiares. E para as pessoas que ficaram queimadas, rezo que tenham acesso aos melhores tratamentos de saúde, os melhores cuidados disponíveis.”
Fonte: G1